A Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, celebrada no último domingo do ano litúrgico, é uma ocasião profundamente rica em significado teológico e espiritual. Instituída pelo Papa Pio XI em 1925, através da encíclica Quas Primas, esta solenidade reafirma a centralidade de Cristo na história e no cosmos, convidando a Igreja e os fiéis a renovarem sua submissão amorosa ao Senhorio de Cristo.
A Origem e o Propósito da Solenidade
O contexto histórico da instituição desta solenidade é crucial para entender sua mensagem. No início do século XX, o mundo experimentava um crescente afastamento das verdades evangélicas, marcado pela ascensão de ideologias seculares e autoritárias. Nesse cenário, Pio XI percebeu a necessidade de recordar aos cristãos que o Reino de Cristo transcende os reinos terrenos e que somente sob Seu governo a humanidade encontra a verdadeira paz e justiça. Como o Papa expressou:
“Cristo deve reinar na mente, que deve aceitar com perfeito assentimento as verdades reveladas por Deus; no coração, que deve amar a Deus acima de todas as coisas; e no corpo, que deve servir como instrumento de santidade.” (Quas Primas, §33)
O Reino de Cristo: Não Deste Mundo, Mas Para Este Mundo
No Evangelho proclamado nesta solenidade (Jo 18,33b-37), Jesus declara diante de Pilatos: “Meu Reino não é deste mundo.” Este versículo é frequentemente interpretado como uma separação entre o espiritual e o material, mas tal leitura é incompleta. Ao afirmar que Seu Reino “não é deste mundo”, Jesus aponta que sua autoridade não deriva de poderes terrenos, mas de Deus. Contudo, o Reino que Ele inaugura é para este mundo, como semente que cresce e transforma a criação até sua plenitude.
A realeza de Cristo manifesta-se como um serviço e um sacrifício. Ele é o Rei que não busca ser servido, mas servir (cf. Mc 10,45), coroado não com ouro, mas com espinhos. Esta realeza nos convida a repensar nossos valores e estruturas sociais, buscando uma civilização de amor que reflita os valores do Evangelho.
A Dimensão Escatológica do Reino
A Solenidade de Cristo Rei também aponta para a dimensão escatológica da fé cristã. O Reino de Cristo será plenamente instaurado no final dos tempos, quando Ele vier em glória para julgar vivos e mortos. Como narra o Evangelho de Mateus, no discurso sobre o Juízo Final (Mt 25,31-46), a separação entre os justos e os ímpios será feita com base na vivência concreta dos valores do Reino: amor, misericórdia e justiça.
Aqui, a figura do Rei-juiz revela o caráter ético do cristianismo. O amor a Cristo encontra sua expressão mais autêntica no amor ao próximo, especialmente aos pobres e necessitados. São João Crisóstomo, comentando esta passagem, afirma:
“Queres honrar o Corpo de Cristo? Não o desprezes quando o vês nu. Não o honres aqui no templo com tecidos de seda, para depois negligenciá-lo lá fora, onde sofre frio e nudez.”
Cristo Rei e o Chamado à Santidade
A celebração da realeza de Cristo é também um chamado pessoal à santidade. Através do batismo, os cristãos participam do tríplice múnus de Cristo como sacerdote, profeta e rei. Assim, cada fiel é convidado a colaborar na expansão do Reino de Deus, vivendo como testemunha autêntica do Evangelho.
São Paulo VI, em sua exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, destacou que a construção do Reino começa no coração de cada pessoa:
“O Reino de Deus não é um conceito, uma doutrina, um programa sujeito à livre elaboração, mas antes de tudo uma pessoa que tem o rosto e o nome de Jesus de Nazaré.”
Dessa forma, a Solenidade de Cristo Rei nos desafia a submeter nossas vidas à soberania de Cristo, permitindo que Ele governe nossas escolhas, pensamentos e ações.
Aplicações Contemporâneas
Em um mundo marcado por divisões, injustiças e indiferença religiosa, a mensagem de Cristo Rei é mais atual do que nunca. Ela nos lembra que a autoridade última não pertence aos poderes terrenos, mas ao Deus que é amor e verdade. Como discípulos de Cristo, somos chamados a ser sinais vivos deste Reino, promovendo a dignidade humana, a paz e a solidariedade.
Na prática, isso significa que a festa de Cristo Rei não deve ser apenas uma celebração litúrgica, mas um compromisso renovado com a construção de um mundo mais justo e fraterno, em conformidade com os valores do Evangelho.
Conclusão
A Solenidade de Cristo Rei é um convite a reconhecermos a supremacia de Cristo em nossas vidas e na história da humanidade. Como cantamos no prefácio da liturgia: “Um Reino eterno e universal, Reino da verdade e da vida, Reino da santidade e da graça, Reino da justiça, do amor e da paz.”
Ao encerrarmos o ano litúrgico com esta celebração, somos impelidos a refletir sobre nossa fidelidade ao chamado de Cristo e a renovar nossa esperança na plenitude de Seu Reino. Assim, proclamamos com confiança: “Venha a nós o Vosso Reino!”
Referências
- Pio XI, Quas Primas, 1925.
- Bíblia Sagrada, João 18,33b-37; Mateus 25,31-46.
- São João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de Mateus.
- São Paulo VI, Evangelii Nuntiandi, 1975.
Notas
- Escatológico: Relativo ao fim dos tempos ou à consumação da história humana segundo o plano divino.
- Múnus: Função ou encargo; refere-se aqui às três missões de Cristo compartilhadas pelo batizado: sacerdotal, profética e régia.